Este blogue é cúmplice de um novo projecto literário: o romance Corpo sem Chão. Para aqueles cuja leitura de Almejado Retorno incitou curiosidade sobre o porvir, poderão ir testemunhando o desbravar de outras histórias: as histórias em que os personagens, desta vez, são fictícios, ou talvez não, dependendo da força das correntes que o romance levar. Convém, todavia, salientar que a forma como estas páginas romanescas são construídas encerra, por parte da sua autora, Aida Borges, a mesma paixão com que escreveu poesia...

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Final possível...

Abril de 2013

Corria já o mês de Abril de 2013 e estava um dia resplandecente. O sol iluminava o orvalho repousado nas flores que adornavam as campas do cemitério do Toural, em Bragança, fazendo-as parecer mais vivas. Este lar de Paz, com cerca de 22000m2, dividido em 22 talhões, espaço apropriado para cerca de 3600 cadáveres, havia sido construído em 1858, mais de um século e meio atrás, mas a sua aparência estava consideravelmente bem preservada. O primeiro homem a ser sepultado, João Ferreira, havia morrido de amores por uma tal de Adalberta, e quando esta lhe deu com os pés, apaixonara-se por uma figueira e uma corda.

Tanto que havia sucedido desde o nascimento do Dinis e da Lara e do coma de Catarina. Desde que ouvira a voz de Frederico ao telefone naquela manhã tormentosa até à informação do neurocirurgião acerca da morte cerebral da sua amada, haviam-lhe ocorrido um turbilhão de emoções e de sentimentos capazes de o aniquilar por completo, não fora o compromisso de ter de cuidar dos tão adorados gémeos de ambos. Ainda depois disso, muitos acontecimentos marcaram o seu percurso até chegar àquele exacto momento.

Francisco segue pelo corredor do flóreo e bem cuidado cemitério acima, olhando as lápides laterais com curiosidade e carregando nos braços um fascinante ramo de rosas brancas e um livro em cuja capa se havia imprimido o título “Corpo sem Chão”. Parecia muito comovido. Supunha cheirar a morte, mas o perfume que inalava era de aprazível entorpecimento. No percurso, cruza-se com um homem gasto, sujo e muito curvado, cujos rasgões nas calças que suporta lhe deixam vislumbrar as cicatrizes ensanguentadas. O velho, à sua saudação, resmunga um bom-dia quase inaudível, enquanto encosta a enxada a um dos monumentos funerários. Depreende tratar-se do coveiro, homem que seguramente há-de ter devolvido à terra muitos sonhos por cumprir.

No limite, no local preciso que Serafim lhe havia indicado na conversa que havia tido com ele na noite do dia anterior, Francisco defronta-se com a lápide de Santa Amália. Ao contrário das circundantes, parecia abandonada, com resquícios de flores secas do seu funeral, poucos meses atrás, e algumas ervas aparentes confundindo-se com o desabrochar de margaridas que a Primavera de encarregara de fazer despontar.

Benzendo-se e ajoelhando-se, parece fazer-lhe uma prece de gratidão. Com efeito, o nosso protagonista acreditava religiosamente que todo o desenrolar da sua história de vida a partir do instante em que recebe a terrível notícia de Frederico, alguém que deixou de ver com desconfiança e que passou a admirar com profundo respeito, se apoiou no atendimento prodigioso ao seu íntimo pedido. A imagem de Santa Amália não o largara desde então. Até o sucesso do lançamento da sua recente obra “Corpo Sem Chão” considerava ter sido obra sua.

No regresso a Coimbra para ver os seus filhos recém-nascidos e na sua preocupação com o estado de saúde crítico da sua venerada mulher apenas lhe ocorria um pensamento: esperar que Santa Amália, que acabara de abandonar as lutas terrenas, convencesse o Divino e Nossa Senhora a Resgatarem Catarina do coma e a Deixarem-na viver, feliz, a seu lado e ao dos gémeos, algo que a própria sempre tanto almejou. Não haveria justiça na Terra se assim não sucedesse.

Apesar das histórias rocambolescas que punham em causa todo o miraculoso caso de Amália, transformando-o numa fraude, custava-lhe a aceitar que este fosse apoiado no nada, assim como o constrangia admitir que o Padre Santos, que conhecera como um homem bom e generoso e com o qual havia convivido nos seus tempos de infância, quando era acólito, estivesse envolvido numa farsa desta natureza para obter lucro económico. Só lhe restava uma saída: acreditar que tinha havido definitivamente um milagre, tal como o houvera seguramente para com a sua esposa.

Efectivamente, a própria Catarina havia descrito a imagem de uma mulher que a tinha auxiliado enquanto permanecia presa ao coma. A descrição desta imagem reproduz fielmente a representação que Francisco retém de Santa Amália no seu leito de morte, quando a visitou por ocasião do seu velório.

E como Catarina conseguiu sair do coma no preciso momento em que o bisturi se preparava para lhe rasgar o coração, ninguém conseguia justificar, nem a própria medicina que se tinha encarregue de prognosticar o seu fim. Mas a verdade é que ela estava viva! E sã! Carregada de renovadas energias e sorrisos com que prendava todos os dias os seus rebentos e premiava o âmago do seu adorado consorte, bem como o dos seus familiares e amigos. Frederico tomaria sempre parte no seu coração, mas Francisco não se incomodava com a partilha: a essência de Catarina era, a seu ver, tão grandiosa e sublime que nela haveria amor bastante para os dois! A ele, bastar-lhe-ia vê-la sorrir todos os dias!

Nem um milhão de rosas chegariam para mostrar a sua infinita gratidão a Santa Amália, mas as palavras contidas no seu livro, quando ensopadas pela chuva, haveriam de descer à terra e tocar-lhe o corpo defunto para a fazer ressurgir, eternizando-a. De onde ela estivesse, haveria certamente de reconhecer este gesto.

Francisco, preso nas suas preces, oferece ao túmulo o livro e as rosas. Benze-se em memória da sua depositária e dirige-se por fim à entrada do cemitério. Fecha as portas rodando jubiloso a chave do seu coração: para trás, ficava todo um percurso e um auspicioso destino.

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