Dezembro de 2012
Nessa manhã, Francisco havia deixado os gémeos à guarda da mãe de Catarina para a ir visitar ao seu leito mórbido. Haviam-se passado cerca de setenta e duas horas desde que sua esposa se entregara às trevas e vinte e quatro desde que começaram a correr os primeiros rumores de que a equipa médica iria iniciar os testes para confirmar a sua morte cerebral. Era aterrorizante! Começava a sentir o chão a fugir debaixo de si, sem o poder acompanhar. Não havia pregado olho nessa noite. O que iria ser dos seus filhos sem a mãe!
Os ponteiros do relógio ainda não haviam atingido as seis quando Francisco se ergue do seu leito matrimonial, banhado em sal. Exceptuando os instantes em que mudou fraldas e aqueceu biberões, com os bebés ao colo, passara a noite a recordar os suspiros de prazer que a mulher lhe havia suscitado e que ele havia igualmente injectado naquele que era o seu ninho de amor. Não conseguia imaginar, e muito menos aceitar, que a partir daquele dia tudo se resumiria a memórias. Cada “amo-te” passaria a ser uma melodia de funestas recordações cujo timbre tocaria o seu coração como agulhas que o fariam sangrar até ficar exangue. Era tudo muito aterrador! No centro de um furacão americano sentir-se-ia com toda a certeza mais aconchegado. O abraço de Catarina era tudo o que precisava naquele momento.
Francisco percorre o corredor do serviço de Medicina Intensiva entregue ao negrume dos seus pensamentos, mais negros do que a camisa que albardava e do que a barba que pendia das suas faces de pavor. O próprio corredor, sem luz natural, parecia até mais sombrio que o habitual. Ao fundo exibia-se a porta do bloco operatório, que Catarina trespassaria para, em poucos minutos, abandonar o perfume da sua essência. Quando regressasse seria uma carcaça cujas entranhas os abutres haviam devorado.
Foi com alguma incredulidade que reconhece a figura de Frederico cruzando-se com ele na passagem que dava acesso aos cuidados intensivos.
- Francisco…lamento! Lamento tanto! Não consigo imaginar aquilo por que possas estar a passar! – disse, com sincera solidariedade e fácies igualmente carregado.
- Não, não podes imaginar! O que é que vieste aqui fazer? Vieste despedir-te da desdita? – continua Frederico, sempre à defesa.
- A Catarina é minha amiga! Também estou a sofrer!
- Imagino que estejas! – afirmou, com visível sarcasmo.
- Nunca existiu nada entre nós, se é essa a ideia que te consome! Posso-te garantir que não!
- O que é que isso me interessa neste momento, Frederico?!!! – questiona, aumentando o tom de voz.
- Desculpa, não queria ser inconveniente!
- Se queres mesmo ajudar, Frederico, se carregas tanto pesar como dizes sentir, usa o teu estatuto e impede aqueles abutres de lhe arrancarem o coração! Faz qualquer coisa, em vez de tentares convencer-me de algo que não interessa nada…
- A minha relação com Catarina interessa-me e muito! Não te vou negar que nutro por ela sentimentos muito nobres, sobretudo de dignidade e respeito, coisa que não parece estares a vislumbrar! Mas dadas as circunstâncias, vou relevar!
- É da minha mulher que estamos a falar, não da tua! Não me venhas falar de respeito numa altura destas! – retruque Francisco, ao que Frederico baixa os olhos ao chão. E continua:
- Se não vens tentar demover aqueles imbecis de a matarem, põe-te a andar daqui para fora!
- Conheces a legislação tão bem como eu! Não há registos! Não posso fazer nada, nem sequer sou marido dela! Não me podes cobrar isso! – afirmou Frederico, num tom controlado, na esperança de trazer Francisco à razão.
- Para que te serve então o curso de Medicina? Para tu e os da tua laia andarem para aí a pôr e a dispor da vida das pessoas?
- Eu não pertenço à equipa que diagnosticou a morte cerebral! Eu não sou neurocirurgião, nem sequer trabalho neste hospital! Não conheço a equipa e não tenho o direito de me imiscuir no trabalho dos meus colegas! Não estás a ser razoável Francisco!
- E tu, estavas a ser razoável quando te envolveste com a minha mulher? Responde Frederico! Vá, responde!!! – vocifera Francisco, abanando Frederico pelos ombros.
Naquele instante, passa a secretária do bloco operatório que fica espantada e incrédula a olhar a cena. Frederico desprende-se de Francisco e ambos se olham intimamente com os olhos mareados, durante segundos. Não conseguiu proferir nem mais uma palavra, antes de virar costas e seguir caminho. Sabia que, dissesse o que dissesse, Francisco não iria processar clara e precisamente a mensagem. Desde o casamento de Catarina, conhecia o marido da sua amiga como um homem sensato, calmo e ponderado. Aquela sua atitude de ataque só podia ser explicável pelo enorme desespero que carregava! E isso, ele conseguia entender bem!
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