Este blogue é cúmplice de um novo projecto literário: o romance Corpo sem Chão. Para aqueles cuja leitura de Almejado Retorno incitou curiosidade sobre o porvir, poderão ir testemunhando o desbravar de outras histórias: as histórias em que os personagens, desta vez, são fictícios, ou talvez não, dependendo da força das correntes que o romance levar. Convém, todavia, salientar que a forma como estas páginas romanescas são construídas encerra, por parte da sua autora, Aida Borges, a mesma paixão com que escreveu poesia...

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

No corredor do desespero

Dezembro de 2012

Nessa manhã, Francisco havia deixado os gémeos à guarda da mãe de Catarina para a ir visitar ao seu leito mórbido. Haviam-se passado cerca de setenta e duas horas desde que sua esposa se entregara às trevas e vinte e quatro desde que começaram a correr os primeiros rumores de que a equipa médica iria iniciar os testes para confirmar a sua morte cerebral. Era aterrorizante! Começava a sentir o chão a fugir debaixo de si, sem o poder acompanhar. Não havia pregado olho nessa noite. O que iria ser dos seus filhos sem a mãe!

Os ponteiros do relógio ainda não haviam atingido as seis quando Francisco se ergue do seu leito matrimonial, banhado em sal. Exceptuando os instantes em que mudou fraldas e aqueceu biberões, com os bebés ao colo, passara a noite a recordar os suspiros de prazer que a mulher lhe havia suscitado e que ele havia igualmente injectado naquele que era o seu ninho de amor. Não conseguia imaginar, e muito menos aceitar, que a partir daquele dia tudo se resumiria a memórias. Cada “amo-te” passaria a ser uma melodia de funestas recordações cujo timbre tocaria o seu coração como agulhas que o fariam sangrar até ficar exangue. Era tudo muito aterrador! No centro de um furacão americano sentir-se-ia com toda a certeza mais aconchegado. O abraço de Catarina era tudo o que precisava naquele momento.

Francisco percorre o corredor do serviço de Medicina Intensiva entregue ao negrume dos seus pensamentos, mais negros do que a camisa que albardava e do que a barba que pendia das suas faces de pavor. O próprio corredor, sem luz natural, parecia até mais sombrio que o habitual. Ao fundo exibia-se a porta do bloco operatório, que Catarina trespassaria para, em poucos minutos, abandonar o perfume da sua essência. Quando regressasse seria uma carcaça cujas entranhas os abutres haviam devorado.

Foi com alguma incredulidade que reconhece a figura de Frederico cruzando-se com ele na passagem que dava acesso aos cuidados intensivos.

- Francisco…lamento! Lamento tanto! Não consigo imaginar aquilo por que possas estar a passar! – disse, com sincera solidariedade e fácies igualmente carregado.

- Não, não podes imaginar! O que é que vieste aqui fazer? Vieste despedir-te da desdita? – continua Frederico, sempre à defesa.

- A Catarina é minha amiga! Também estou a sofrer!

- Imagino que estejas! – afirmou, com visível sarcasmo.

- Nunca existiu nada entre nós, se é essa a ideia que te consome! Posso-te garantir que não!

- O que é que isso me interessa neste momento, Frederico?!!! – questiona, aumentando o tom de voz.

- Desculpa, não queria ser inconveniente!

- Se queres mesmo ajudar, Frederico, se carregas tanto pesar como dizes sentir, usa o teu estatuto e impede aqueles abutres de lhe arrancarem o coração! Faz qualquer coisa, em vez de tentares convencer-me de algo que não interessa nada…

- A minha relação com Catarina interessa-me e muito! Não te vou negar que nutro por ela sentimentos muito nobres, sobretudo de dignidade e respeito, coisa que não parece estares a vislumbrar! Mas dadas as circunstâncias, vou relevar!

- É da minha mulher que estamos a falar, não da tua! Não me venhas falar de respeito numa altura destas! – retruque Francisco, ao que Frederico baixa os olhos ao chão. E continua:

- Se não vens tentar demover aqueles imbecis de a matarem, põe-te a andar daqui para fora!

- Conheces a legislação tão bem como eu! Não há registos! Não posso fazer nada, nem sequer sou marido dela! Não me podes cobrar isso! – afirmou Frederico, num tom controlado, na esperança de trazer Francisco à razão.

- Para que te serve então o curso de Medicina? Para tu e os da tua laia andarem para aí a pôr e a dispor da vida das pessoas?

- Eu não pertenço à equipa que diagnosticou a morte cerebral! Eu não sou neurocirurgião, nem sequer trabalho neste hospital! Não conheço a equipa e não tenho o direito de me imiscuir no trabalho dos meus colegas! Não estás a ser razoável Francisco!

- E tu, estavas a ser razoável quando te envolveste com a minha mulher? Responde Frederico! Vá, responde!!! – vocifera Francisco, abanando Frederico pelos ombros.

Naquele instante, passa a secretária do bloco operatório que fica espantada e incrédula a olhar a cena. Frederico desprende-se de Francisco e ambos se olham intimamente com os olhos mareados, durante segundos. Não conseguiu proferir nem mais uma palavra, antes de virar costas e seguir caminho. Sabia que, dissesse o que dissesse, Francisco não iria processar clara e precisamente a mensagem. Desde o casamento de Catarina, conhecia o marido da sua amiga como um homem sensato, calmo e ponderado. Aquela sua atitude de ataque só podia ser explicável pelo enorme desespero que carregava! E isso, ele conseguia entender bem!

Sem comentários:

Enviar um comentário